Lauro de Freitas


Processo de emancipação violentou identidade cultural


A cidade comemorou no dia 31 de julho o 47º aniversário de sua emancipação política com um espetáculo de Daniela Mercury na Praça da Matriz – e questões históricas de relevo ainda em aberto, principalmente no que diz respeito ao seu nome. A população já teria assimilado a designação “Lauro de Freitas”, imposta em 1962 ao lugar de Santo Amaro de Ipitanga, mas o abandono das raízes não foi pacífico à época, e deixou sequelas para o desenvolvimento da cidade por pelo menos 27 anos.

Logo na sua primeira eleição, feita às pressas para cumprir prazos legais da emancipação, a cidade recebeu um prefeito que Santo Amaro de Ipitanga não aprovou, eleito pela diferença de votos das urnas de Valéria, então pertencente ao novo município, mas tradicionalmente uma outra comunidade. O território original da cidade emancipada totalizava 210 km2 e abrangia grande parte do que hoje é a região da avenida Paralela. Amarílio Tiago dos Santos, filho da terra derrotado em 1962, seria eleito em 1966, mas governou por dois anos apenas. Acabou cassado pela Câmara Municipal em 1969.

Na análise de Emanuel Paranhos, co-autor do "Livro da História de Lauro de Freitas", em parceria com Gildásio de Freitas, o advento da ditadura militar, dois anos depois da emancipação, ajudou a alienar a comunidade nativa na sua própria cidade. A situação teria sido agravada a partir de 1972, quando o município foi declarado "de interesse da segurança nacional" por decreto-lei amparado na constituição de 1967.

Os municípios de Simões Filho, Candeias e Camaçari foram igualmente enquadrados na lei, que passou a impor prefeitos nomeados pelo Governo Federal a determinadas localidades, atrofiando a representatividade política local. Santo Amaro de Ipitanga foi incluída no rol por ser vizinha de uma base aérea da Aeronáutica. O aeroporto já tinha sido recortado para se encaixar no território de Salvador.

A prefeitura foi ocupada por Ismael Ornelas Farias e Gerino de Souza Filho entre 1973 e 1985, quando voltaram a ser realizadas as eleições diretas nas áreas de segurança nacional. O primeiro prefeito eleito depois da redemocratização foi Paulo Rosa Neto, que governou entre 1986 e 1988, sendo substituído por João Leão, atualmente deputado federal pelo PP. A retomada da vida política local trouxe uma mudança profunda no ritmo de desenvolvimento da cidade – João Leão influenciou decisivamente a eleição dos três prefeitos seguintes, todos do seu grupo político: Otávio Pimentel, em 1993, Roberto Muniz em 1997 e Marcelo Abreu em 2001.

Nova Etapa — O desenvolvimento econômico dos últimos vinte anos trouxe para a cidade muita gente nova e mais preparada que não se integrou à população nativa. A cidade recebe cerca de dez mil novos habitantes todos os anos e já teria atingido cerca de 190 mil. O cálculo parte do número de residências atendidas no município pela Empresa Baiana de Águas e Saneamento, a Embasa, levando-se em conta quatro pessoas por família, em média.

Em entrevista concedida há seis anos, Paranhos identificava diferenças no nível de educação, no poder de compra e na cultura. O professor defendia que os nativos devem buscar maior qualificação e noções de cidadania para recuperar os espaços perdidos nas décadas de 70 e 80. "A queixa que eu ouço nas ruas é que os naturais da terra não têm espaço na cidade" afirmava Paranhos. "Não se pode negar que a vinda de novos moradores teve aspectos positivos, tanto economicamente, trazendo comércio, indústrias e um novo mercado consumidor, como social e urbano, mas isso também contribuiu para o aumento da violência e para o desgaste do meio ambiente".

"Falta aos recém-chegados uma identidade afetiva com o lugar de Santo Amaro de Ipitanga que motive a defesa da comunidade com um todo", avaliou a socióloga paulistana Viviane Drummond, residente em Vilas do Atlântico. "Para quem chega agora, Lauro de Freitas é um desconhecido que deu nome a uma espécie de extensão de Salvador – e quando se descobre que o nome nada tem a ver com o lugar maior é a certeza de que não há identidade local", afirma. Para a socióloga, as pessoas precisam de se sentir parte de uma cultura para que a defendam e promovam. Mas mesmo as novas gerações das famílias mais antigas de Santo Amaro de Ipitanga desconhecem a sua origem cultural, "deixando assim de ocupar um espaço que lhes pertence sem dúvida", completa.

Toponímia — As sequelas da alteração forçada do referencial de Santo Amaro de Ipitanga ficam mais claras no déficit de integração das diversas comunidades. Para a população de Itinga e Vilas do Atlântico, por exemplo, "Lauro de Freitas" designa somente o centro da cidade. Para as famílias mais tradicionais de Portão, o topônimo nada vale. Os mais antigos ainda dizem que vão "a Santo Amaro" – nome que aglutina as comunidades – quando precisam se deslocar ao centro.

A arquiteta Sandra Xavier observa que "se a construção de sentido é um elemento essencial para a ocupação e apropriação do espaço, então ele se torna um dos elementos que vincula as pessoas a um território". Para ela, essa é "uma das pedras de toque" do sentido de pertencer e de constituição da identidade. "A toponímia ocupa um papel central", verifica. Segundo a tupinóloga Consuelo Pondé de Sena, catedrática da Universidade Federal da Bahia (Ufba), mudanças de nome como de Santo Amaro de Ipitanga para Lauro de Freitas, e Engenho Novo para Simões Filho tendem a acontecer cada vez mais.

As raízes culturais cedem espaço ao interesse de mercado: os topônimos só se mantêm se forem marcas comerciais para o turismo, por exemplo. É precisamente essa a história da praia de Buraquinho, que em qualquer mapa vai de Ipitanga à foz do Joanes. Há 30 anos, por conveniência de marketing ligada à comercialização do novo loteamento, a maior parte da praia foi artificialmente rebatizada "Vilas do Atlântico". Hoje, Buraquinho é um nome que designa apenas uma curta faixa de praia junto à foz do rio.

As violações toponímicas, entretanto, quase sempre obedecem a critérios políticos de momento, ainda que com a melhor das intenções. A substituição de Santo Amaro de Ipitanga por Lauro de Freitas seria um exemplo clássico.

Foi o engenheiro e vereador Paulo Moreira de Souza, de Salvador, falecido em março de 2003, aos 91 anos, quem primeiro articulou a emancipação de Santo Amaro de Ipitanga, apoiado pelas lideranças políticas locais. A proposta foi apresentada à Câmara Municipal de Salvador e aprovada por unanimidade porque a bancada do PSD, majoritária à época, achou de seu interesse homenagear um político falecido em circunstâncias polêmicas durante a campanha eleitoral para o governo do Estado.

O historiador Cid Teixeira, que integrava o conselho de cultura e turismo de Salvador em 1962, disse que, sem êxito, defendeu a preservação do nome de Santo Amaro de Ipitanga. A mudança do nome no bojo de uma manobra política é um exemplo da perda de identidade da comunidade – e fato pacífico entre os especialistas que já trataram do assunto. Poucos, entretanto, se sentem à vontade para dar declarações públicas a respeito disso em consideração à família do homenageado.

A Lei Orgânica do Município de Lauro de Freitas prevê a convocação de um plebiscito com o objetivo de repor o nome de Santo Amaro de Ipitanga, que seria de iniciativa da Câmara Municipal. A consulta à população sobre o tema é também uma promessa da prefeita Moema Gramacho (PT), renovada em entrevista concedida ao marujo em outubro do ano passado. Hoje, o Executivo dispõe de maioria de dois terços na Câmara, suficiente para fazer aprovar o plebiscito.

Tude Celestino – Enquanto a consulta popular não vem, lideranças políticas e da cena cultural defendem a adoção de medidas que iniciem o resgate da identidade local. Uma delas é a atribuição do nome do poeta Tude Celestino, que viveu desde a década de 40 na então Santo Amaro de Ipitanga, ao Centro de Cultura de Lauro de Freitas (CCLF).

É marcante na sua obra o protesto contra o nome casuísta de "Lauro de Freitas", que ele nunca reconheceu, tratando a cidade sempre por Ipitanga — o nome original indígena, que quer dizer água vermelha — ou Santo Amaro de Ipitanga, o nome jesuíta adotado desde a fundação do povoado, há 401 anos. Fiel aos seus princípios, Tude Celestino chegou a recusar o título de cidadão laurofreitense em homenagem à representatividade de sua obra poética. Disse que só aceitaria receber um título de cidadão ipitanguense.

Promovido pela atriz e produtora Tina Tude, sua filha, um "Tributo a Tude Celestino" marcou o aniversário de vinte anos da morte do "poeta de Ipitanga" no último dia 21 de julho. O recital de poesias da trilogia O Ás de Ouro, no Centro de Cultura de Lauro de Freitas, serviu de plataforma de lançamento da campanha pelo novo nome do espaço cultural.

Um abaixo-assinado nesse sentido já está em circulação. A lista pode ser encontrada no próprio Centro de Cultura e na secretaria de Cultura, localizada no Terminal Turístico Mãe Mirinha de Portão. A secretaria de Educação, no Caic, em Itinga, a barraca da Gávea, na praia de Vilas do Atlântico e a Câmara Municipal, no Centro, também são pontos de assinatura.

A Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) vem rebatizando espaços semelhantes, todos sob os seus cuidados, em várias cidades da Bahia. Os novos nomes são sempre de personagens ilustres da cena cultural local. Para rebatizar o espaço de Lauro de Freitas, a Funceb exige a chancela popular. A prefeitura já pediu oficialmente a providência, por indicação do vereador Fausto Franco (PDT), mas é necessário demonstrar o respaldo popular de um abaixo-assinado.

Participaram da homenagem o músico Rick Vieira, além de representantes de entidades culturais, literatas, autoridades, personalidades, admiradores e antigos amigos e parceiros do poeta, como Adelmo Oliveira, Messias Santiago, Gilberto Baraúna e Angelo Roberto. Encabeçados pelo vice-prefeito João Oliveira (PSDB) e pelo secretário de Educação Paulo Aquino, estiveram presentes alguns dos principais nomes da política local. Duzinho Nery, responsável pelo Festival Ipitanga de Teatro, aproveitou a ocasião para voltar a reivindicar a reforma do Centro de Cultura: "Tude Celestino não gostaria de ver o seu nome associado a um espaço abandonado", disse.

Tude Celestino nasceu em Campo Formoso em 25 de junho de 1921 e foi criado em Ilhéus, mas adotou Santo Amaro de Ipitanga, onde viveu até a morte. Está sepultado no cemitério da igreja matriz. Autor de formação autodidata, cego em consequência do diabetes a partir de fins dos anos 70, manteve-se escrevendo até 1987, quando a doença já o debilitava bastante, o que acabaria por levá-lo à morte.

A trilogia O Ás de Ouro, poema mais emblemático de sua obra, é uma saga fictícia em três fases, com linguagem matuta, tipicamente sertaneja e eivada de traços trágicos, que narra a trajetória de um sujeito acometido pelo sentimento de vingança. A trilogia também dá nome a seu único livro, que teria segunda edição publicada pouco antes de sua morte, mas que estava há vinte anos aguardando lançamento, previsto agora em edição especial pelo aniversário de seu falecimento.

O projeto ATiTude, liderado por Tina Tude, e que está em apreciação pela secretaria municipal de Educação, prevê a implementação do estudo literário da poesia tudina nas escolas públicas municipais como dispositivo para tratar as referências culturais locais, bem como a história e memória de Ipitanga. No mês passado, Tina Tude levou a idéia ao Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo (USP), como parte da exposição que o Etsedron realizou no MAC, juntando-se às comemorações do ano da França no Brasil.

Fonte: http://www.rogerioborges.com/2009/09/processo-de-emancipacao-violentou.html

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